Língua brasileira de sinais (Libras): 20 anos de seu reconhecimento legal
Por Pedro Henrique Witchs
Vitória, 24 de abril de 2022
No dia 24 de abril de 2002, foi promulgada a Lei Federal nº 10.436, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. As discussões em torno dessa Lei não são poucas e a menção a ela está presente em quase todas as produções que tratam sobre a Libras, os surdos ou a sua educação. No ano de 2022, a Lei de Libras — como ficou conhecida — completa 20 anos de existência, mas a língua sobre a qual ela dispõe ainda carece de condições para ser ensinada, aprendida, traduzida, interpretada e, principalmente, para ser falada.
É importante ressaltar que a Libras não passou a existir no momento em que foi legalmente reconhecida. Apesar disso, podemos inferir que uma antiga língua de sinais brasileira não seja a primeira língua de sinais a ser falada no país, já que algumas línguas de sinais indígenas devem existir desde muito antes da chegada dos primeiros colonizadores europeus no território brasileiro. Contudo, entende-se que uma língua de sinais brasileira moderna começou a se estabelecer na medida em que uma língua de sinais falada por surdos brasileiros entrou em contato, a partir da segunda metade do século XIX, com a língua de sinais francesa falada pelo professor surdo francês Edouard Huet, primeiro diretor da mais antiga instituição voltada à educação de surdos no Brasil, hoje conhecida como Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines).
De lá para cá, essa língua não era chamada pelo nome, nem pelo apelido que tem hoje. Gestos, mímica, sinais manuais, linguagem das mãos e linguagem de sinais são apenas alguns dos inúmeros nomes empregados para identificá-la durante o século XX. Uma das primeiras linguistas a estudá-la, Lucinda Ferreira-Brito, a chamou de língua de sinais de centros urbanos brasileiros (LSCB)[1] justamente para diferenciá-la da língua de sinais ka’apor brasileira, falada por surdos e ouvintes da etnia Urubu Ka’aapor no sul do Maranhão. Seguindo uma convenção internacional de nomenclatura de línguas de sinais, há ainda o nome língua de sinais brasileira (LSB). Ambas as denominações e siglas, entretanto, foram preteridas pelo movimento social dos surdos brasileiros que, encabeçado pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), decidiu que língua brasileira de sinais (Libras) era mais apropriado para identificar essa língua em português, conforme documentado por Fábio Brito[2] e Ana Regina Campello[3].
O reconhecimento da Libras pode ser considerado reflexo de um movimento internacional. Desde 1995, línguas de sinais nacionais têm sido legalmente reconhecidas por Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU), de modo que a Federação Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf - WFD) apoiou o movimento surdo de diferentes países para que essa meta fosse alcançada. O reconhecimento explícito dessas línguas de sinais foi objeto de estudo de Maartje De Meulder[4], que, até 2015, havia identificado pelo menos cinco tipos de reconhecimento explícito de línguas de sinais em 31 países, sendo a maioria deles integrante da União Europeia. Quanto à Lei de Libras, é válido destacar algumas observações que permitem ampliar as reflexões sobre esse importante instrumento legal.
Apesar de muitas pessoas entenderem que, a partir da Lei de Libras, o Brasil tenha se tornado um país oficialmente bilíngue, isto é, com dois idiomas (co)oficiais, o seu art. 1º estabelece o reconhecimento da Libras como um meio legal de comunicação e expressão. Diferentemente, por exemplo, do que acontece no New Zealand Sign Language Act 2006, instrumento legal que declara que a língua de sinais neozelandesa é uma língua oficial da Nova Zelândia, assim como a língua inglesa e a língua maori. A respeito do meio legal de comunicação e expressão, Ricardo Abreu[5] afirma que tal nomenclatura inaugura um novo estatuto jurídico-linguístico brasileiro, já que a classificação de línguas na legislação estava restrita, até 2001, a idioma oficial, no texto constitucional, e à língua nacional, em textos infraconstitucionais. Embora possamos entender que o reconhecimento legal da Libras possibilita que ela seja oficialmente incorporada no conjunto de línguas nacionais faladas no Brasil, reconhecê-la como meio legal de comunicação e expressão, segundo o pesquisador dos direitos linguísticos, pode ter sido uma estratégia empregada por representantes do Congresso Nacional — e que não funcionou muito bem — para que a Libras não fosse “equivocadamente confundida, ao lado da língua portuguesa, como uma língua oficial do Brasil” (p. 66)[5].
Assim, o reconhecimento como um meio legal de comunicação e expressão reduz a Libras a uma percepção utilitarista de língua. Além disso, o parágrafo único que, na Lei, apresenta uma definição da Libras é problemático. De acordo com Xoán Lagares[6]:
A necessidade de definir a Libras como um “sistema linguístico” (duas vezes no mesmo enunciado, de forma redundante e com uma sintaxe truncada) com “estrutura gramatical própria” surge, talvez, do preconceito que pesa sobre as línguas visuais, muitas vezes, socialmente percebidas como suportes gestuais de alguma outra língua oral. (p. 78)
Ao se falar em suporte gestual para uma língua vocalizada, torna-se difícil não apontar para o outro parágrafo único, o que encerra a Lei nº 10.436. Nele, fica estabelecido que a Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa, o que permite inúmeros questionamentos, dos quais destaco dois: (i) a Libras não tem o mesmo valor que a língua portuguesa? (ii) o bilinguismo é uma imposição aos surdos que têm a Libras como primeira língua? Questões como estas evidenciam a dupla-face de instrumentos legais na regulamentação de uma política linguística. Na mesma medida em que dispõe formas institucionalizadas de apoiar o uso e a difusão da Libras, a Lei também impõe um limite. Um controle. Uma normativa.
A despeito desses aspectos que envolvem o reconhecimento legal da Libras, não podemos negar que muitas conquistas foram possíveis a partir da Lei nº 10.436, de 2002. Destaca-se a instauração do dever da oferta de atendimento e tratamento adequado às pessoas surdas, por parte de instituições públicas ou empresas concessionárias de serviços públicos, bem como o dever de garantir o ensino da Libras nos cursos de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério de nível médio e superior em instituições educacionais públicas. Para regulamentar a Lei de Libras, três anos mais tarde, foi sancionado o Decreto Federal nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que estabeleceu, dentre outras coisas, as condições para a formação de professores de Libras, de professores para a educação bilíngue de surdos e de tradutores e intérpretes de Libras e língua portuguesa.
20 anos depois, a Língua Brasileira de Sinais não é apenas um componente curricular nas instituições de Ensino Superior. Ela se expandiu, tornando-se uma área do conhecimento e, até mesmo, departamento de centros de ensino superior ou linha de pesquisa em programas de pós-graduação, sem contar os cursos de licenciatura e bacharelado em Letras-Libras. Sabemos que ainda há muito para crescer. Alguns movimentos restritos à esfera municipal já apresentam propostas de currículo de Libras para a Educação Básica — uma demanda importante que a Lei de Libras não abarcou — e é possível encontrar, mais recentemente, projetos de lei e ideias legislativas que propõem que a Libras agora se torne uma língua cooficial do Brasil ao lado da língua portuguesa. Sem dúvidas, isso significa que temos muito trabalho pela frente. Um deles, por exemplo, é a necessidade de tornar as diferentes línguas de sinais indígenas e de comunidades isoladas politicamente visíveis para o Estado nacional, de modo que seu uso e ensino também sejam amparados pelo poder público.
Para os próximos 20 anos, registro aqui um desejo-duplo: que estudiosos, professores, tradutores, intérpretes e aprendizes da Libras e de outras línguas de sinais continuem unindo forças com a comunidade surda em prol das condições de acesso e igualdade para essa parcela da população; e que as pessoas surdas falantes dessa língua e de outras línguas de sinais, verdadeiras protagonistas dessa luta, possam encontrar sempre mais condições para expandir seu lugar de sinalização.
[1] BAALBAKI, Angela Corrêa Ferreira; CALDAS, Beatriz Fernandes; NOGUEIRA, Tathiana Targine. Ainda se busca “por uma gramática de línguas de sinais”? A figura de uma precursora. Revista Linguística, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 29-59, 2020.
[2] BRITO, Fábio Bezerra de. O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. 2013. 276 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; BRITO, Fábio Bezerra de. Movimento Social Surdo e luta pelo reconhecimento da língua brasileira de sinais. Curitiba: CRV, 2021.
[3] CAMPELLO, Ana Regina e Souza. A resistência da Feneis da denominação da Libras sobre LSCB. In: SOUZA, Regina Maria de (Org.). História da emergência do campo das pesquisas em educação bilíngue de/para surdos e dos estudos linguísticos da Libras no Brasil: contribuições do Grupo de Trabalho Língua(gem) e Surdez da Anpoll. Curitiba: CRV, 2019. p. 87-103.
[4] De MEULDER, Maartje. The Legal Recognition of Sign Languages. Sign Language Studies, Washington, DC, v. 15, n. 4, p. 498-506, 2015.
[5] ABREU, Ricardo Nascimento. Estatutos jurídicos e processos de nacionalização de línguas no Brasil: considerações à luz de uma emergente teoria dos direitos linguísticos. Revista da Abralin, v. 17, n. 2, p. 46-76, 2019.
[6] LAGARES, Xoán Carlos. Qual política linguística? Desafios glotopolíticos contemporâneos. São Paulo: Parábola, 2018.