Línguas de sinais e surdos no Oscar e no Cinema

Línguas de sinais e surdos no Oscar e no Cinema

Por Pedro Henrique Witchs
Vitória, 28 de março de 2022
[atualizado em 29/03/2022]

Na 94ª cerimônia de entrega dos Academy Awards, ou Oscars 2022, que aconteceu em Hollywood, na noite de 27 de março de 2022, o filme de longa-metragem No Ritmo do Coração (CODA, 2021) foi agraciado em três categorias dessa importante premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Em Melhor Ator Coadjuvante, concedido ao ator surdo Troy Kotsur, pelo papel de Frank Rossi, pai da protagonista do filme; em Melhor Roteiro Adaptado, uma vez que o longa é uma adaptação estadunidense do filme francês A Família Bélier (La Famille Bélier, 2014); e, surpreendendo muitos críticos, No Ritmo do Coração também ganhou o Oscar de Melhor Filme.

O filme trata de um momento crucial da vida de Ruby Rossi (interpretada por Emilia Jones), filha mais nova e ouvinte em uma família de surdos. Ela ajuda seu pai e seu irmão mais velho na embarcação pesqueira da família e se vê, diariamente, na condição de intérprete particular de seus pais e irmão — uma questão que marca a experiência de vida de filhos de pais surdos, mais conhecidos pelo acrônimo CODA (child of deaf adults) e que se tornou o título original do longa-metragem. A Profa. Dra. Lucyenne Vieira-Machado (2014)¹, que também é Coda, escreveu sobre essa experiência no texto Ser filha de surdos: quando Alice e Dorothy se encontram publicado no site Cientista que virou mãe.

A popularidade de No Ritmo do Coração, agora incrementada com as premiações do Oscar, coloca em evidência não apenas as línguas de sinais, como também as pessoas surdas e intérpretes de línguas de sinais. Nesses poucos momentos em que esses temas recebem grande apelo midiático, a sociedade, de um modo geral, se torna curiosa e sensível em relação a eles. Um exemplo disso é o caso do aumento da procura por cursos de American Sign Language (ASL) após a estreia de Eternos (Eternals, 2021), o longa da Marvel que introduz a heroína surda Makkari, interpretada pela atriz surda Lauren Ridloff. Ao mesmo tempo, nessas ocasiões, é possível observar a propagação de ideias um pouco equivocadas como, por exemplo, o comentário feito por Dira Paes no programa de comentários sobre a cerimônia de entrega do Oscar na Globoplay. Ao conversarem sobre o filme No Ritmo do Coração, a atriz afirmou que, hoje em dia, o correto é se referir a uma pessoa surda como “portador de surdez” — quando, na verdade, faz algumas décadas que a palavra “portador” deixou de ser usada para identificar qualquer pessoa com deficiência.

Diferentemente da versão francesa, No Ritmo do Coração se destaca para além do que se pode ver nele, da mesma forma como argumentado pela Profa. Dra. Orquídea Coelho (2010)² no livro que tem a seguinte metáfora como título: um copo vazio está cheio de ar — assim é a surdez. Isto é, a produção do longa-metragem contou com atores surdos nos papéis de personagens surdos, um feito que não pode ser atribuído ao A Família Bélier. Inclusive, a atriz surda Marlee Matlin, que interpretou a mãe de Ruby, Jackie Rossi, tem experiência com o Oscar. Ela foi a primeira atriz surda a ganhar essa premiação, na categoria de Melhor Atriz, no auge de seus 20 anos (o que também concedeu a ela, na época, o título de atriz mais jovem a receber um Oscar de Melhor Atriz) na 59ª cerimônia em 1987, pela sua atuação como protagonista do filme Filhos do Silêncio (Children of a Lesser God, 1986).

Além dos discursos em ASL dos atores surdos Matlin e Kotsur, a cerimônia do Oscar já direcionou holofotes para línguas de sinais em outros momentos. A pioneira foi a atriz Coda Louise Fletcher, como bem lembrado pela Profa. Dra. Carolina Hessel Silveira, no ano de 1976. Quando recebeu o Oscar de Melhor Atriz na 48ª cerimônia, pelo papel de Enfermeira Ratched em Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975), Fletcher finalizou o seu discurso de agradecimento em ASL no momento em que o direcionou aos seus pais surdos e, ao mesmo tempo, o vocalizou em inglês. Ao receber a premiação de Melhor Atriz na 51ª cerimônia em 1979, por sua atuação no filme Amargo Regresso (Coming Home, 1978), a atriz Jane Fonda realizou parte do seu discurso em ASL ao mesmo tempo em que o vocalizava em inglês. Em 2007, a atriz ouvinte Rinko Kikuchi foi indicada a concorrer o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por sua atuação no filme Babel (2006), no qual interpretou uma adolescente surda falante da língua de sinais japonesa. Em 2018, a atriz ouvinte Sally Hawkins foi indicada a concorrer o Oscar de Melhor Atriz pelo papel de uma zeladora muda falante de ASL no filme A Forma da Água (The Shape of Water, 2017). Na cerimônia do mesmo ano, a atriz e roteirista ouvinte Rachel Shenton recebeu o Oscar de Melhor Curta-Metragem por The Silent Child (2017) e, na ocasião, discursou simultaneamente em língua de sinais britânica (BSL) e inglês. Em 2021, o curta-metragem Feeling Through (2019), que retrata uma situação envolvendo um homem com surdocegueira interpretado pelo ator surdocego Robert Tarango, também foi indicado a concorrer o Oscar de Melhor Curta-Metragem e contou com Matlin como produtora executiva.

É válido destacar que essas não são as únicas produções cinematográficas que tratam sobre surdos e línguas de sinais; elas são muitas e até já se tornaram material de pesquisa. A representação de surdos no cinema foi objeto de análise da Profa. Dra. Adriana Thoma (2002)³ em sua tese de doutorado intitulada O cinema e a flutuação das representações surdas: “Que drama se desenrola neste filme? Depende da perspectiva...”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesse trabalho, Thoma investigou como a alteridade surda é narrada, produzida, inventada, incluída e excluída em filmes que focalizam a surdez e os surdos. De lá para cá, muitas produções que se enquadram nesse enfoque foram lançadas como Um lugar silencioso – parte 1 e 2 (A Quite Place, 2018; 2020); e até mesmo produções nacionais como o curta-metragem Crisálida (2016), que se tornou uma série do catálogo da Netflix em 2020.

De fato, a presença crescente de surdos e de línguas de sinais no cinema desperta a curiosidade e a imaginação do público. Para quem tem algum envolvimento com essas questões — seja pela própria experiência de ser surdo, seja por uma relação familiar ou profissional — isso é motivo de alegria. É importante, contudo, que tenhamos capacidade de fazer uma leitura crítica dessas produções e que seus produtores estejam atentos à diferença cultural e linguística das comunidades de pessoas surdas, promovendo representações respeitosas da experiência da surdez.


¹ VIEIRA-MACHADO, Lucyenne Matos da Costa. Ser filha de surdos: quando Alice e Dorothy se encontram. In: MOIREIRAS, Ligia. Cientista que virou mãe. 2014.
² COELHO, Orquídea (Ed.). Um copo vazio está cheio de ar. Assim é a surdez. Porto: Livpsic, 2010.
³ THOMA, Adriana da Silva. O cinema e a flutuação das representações surdas: "Que drama se desenrola neste filme?" Depende da perspectiva...". 2002. 259 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

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